terça-feira, 18 de setembro de 2007

Samsara

Para os indianos, Samsara é a roda de nascimentos e renascimentos que se repetem até que a perfeição da alma seja alcançada, as missões ou buscas cumpridas ou todos os pecados e karmas devidamente expurgados. No Samsara, revivemos eternamente a mesma situação, em contextos diferentes, até aprendermos a melhor maneira de quebrar o ciclo.

Não adianta perguntar o começo; ela não sabe. Não adianta pedir, ou mesmo insistir que ela vasculhe a memória atrás do fugaz instante em que os olhos, de nada quererem, passaram a tudo desejar. Inútil implorar, teimar e argumentar que tais coisas não se esquecem assim. Ela simplesmente não faz idéia. Foi muito natural, diria ela, tal como respirar, dormir ou comer. Estava no código genético, no inconsciente coletivo, no imaginário popular, ou onde quer que prefiram determinar os estudiosos que porventura se interessarem pelo assunto. Estava na história pintada nas paredes das cavernas ou forjada a ferro e fogo, na memória dos ancestrais, no seu próprio sangue. A informação passou pelas hemoglobinas, pelos cromossomos, pelas cadeias protéicas, invadiu cada núcleo até estar em toda parte, nela toda. Disseminou como peste, como epidemia, e num instante, não havia mais nenhuma célula imune.

Talvez forçando o cérebro, ela lembre que no começo, não houve sintomas. Nada de olhos brilhando ou do mundo parar ao som das notas de Debussy vindas dos céus. Começou, talvez, com um menos pretensioso Neruda, só para animar a vida e fazer esquecer de tudo o que não vale a pena lembrar. Não! Isso não é verdade! Porque se o começo reside aí, de onde vem tanta familiaridade? Como se olhasse nos olhos dele desde o início dos tempos, desde que o universo era apenas pó e a mão divina ordenou que se fizesse a luz. Como se nele residissem todas as respostas às perguntas que ela ainda nem pensou em fazer, e se abrigasse todo o mistério de si mesma.

De que forma explicar a eternidade em um segundo, a estranha sensação de não ter segredos, nem se quisesse, cada vez que ele a fitava? A embriaguez que tomava conta dos sentidos e a obrigava à verdade? Para ele, não mentia, não usava do expediente de mantê-lo à distância – e desconfiava que se tentasse, atestaria pela primeira vez a ineficácia do método. Parecia que sempre o havia conhecido, e os vinte e um anos de sua vida até aqui foram apenas minutos que ele passou fora, os minutos que ele atrasou para chegar à estréia do filme, culpa do trânsito. E todas as conversas diziam, no íntimo, no instante sem te ver, eu nasci, cresci, vivi, mas não se preocupe, porque vou te contar os detalhes destas duas décadas que passaste longe. Tu também me contas o que andou fazendo, e a partir daí, vamos apenas lembrar o que veio antes, muito antes de nós mesmos.

Mais do que conhecendo, sentia como se o estivesse relembrando. Relembrando a maneira de alternar a direção do olhar entre ela e a sua frente enquanto narra uma história, ou de baixar os olhos quando conta algo que o aborrece. Recordando o jeito engraçado de gargalhar, fechando os olhos, e de fazer caretas para implicar, de contrariar sem convicção alguma, só por gosto, e de olhar como se bebesse da fonte inesgotável de absurdos que saem da boca dela. Rememorando o sabor do abraço, do cheiro, da segurança do colo quando a intenção era apenas a de caber em uma cama estreita para discutir um projeto acadêmico. A doçura das palavras e o cinismo da voz, a suavidade do rosto e carinho do sorriso, tudo já conhecia há tempos, tempo demais para saber quando. As três semanas passadas desde a primeira conversa não passavam de ilusão; realidade era o infinito, o eterno, o impalpável.

Até o beijo, quando veio, chegou carregado de conhecimento. Muito, muito antes dele se inclinar para beijá-la, ela já sabia o gosto inebriante que lhe saía da boca, e talvez por isso tenha rido tanto. Talvez por já adivinhar o que viria pela frente, impacientou-se, e disse: Pensei que nunca fosses fazer isso! Por ter certeza de que ele não temeria o inferno dentro dela, e por saber que com ele, dificilmente viveria um inferno, pulou todas as etapas estipuladas por ela mesma, porque ele já as tinha vencido outras vezes. Porque a sensação de sempre, de passado e futuro neles se misturam, e é despejada no presente, como se nada mais existisse, e tudo fizesse sentido, e todos os problemas do mundo pudessem ser resolvidos por eles, enquanto aguardam abraçados ao início da sessão de cinema.

E se os hindus têm razão e a explicação para esta história está no Samsara? E se eles estão condenados a reviver eternamente o mesmo enredo, o mesmo início? Neste caso, ela desconfia que, se aprender a sair da roda, vai tratar de esquecer a fórmula para nunca mais quebrar o ciclo.

Procura-se

Aos nossos queridos leitores, calma.

Não saímos do ar. Acontece apenas que Fraulein e Lady viajaram de mudança pra uma cidade beeeem longe da original e ainda estão desacostumadas ao clima, às ruas, etc. Enquanto tentam voltar ao normal e continuar escrevendo as aventuras e desventuras em série que sempre acompanham as damas, o blog acabou ficando meio solitário...

Assim sendo, a Lady vai postar já já um texto que é cheio de memórias afetivas... não percam! Em pouco tempo, voltamos à velha forma. E as histórias completas das mudanças, a gente promete contar em breve! Abraços a todos.