sábado, 7 de julho de 2007

Amasso filosófico

Delectatio morosa do latim, “deleite moroso”. Trata-se, de acordo com Umberto Eco, da “demora concedida até mesmo àqueles que sentem a necessidade premente de procriar”. Em outras palavras, delectatio morosa seria o ato de segurar o gozo para que os amantes possam se perder nas preliminares, nas fantasias, nos corpos um do outro, na contemplação, nos toques, com o intuito único de oferecer prazer aos dois (ou seja qual for o número de sua preferência). Na "Súmula Teológica" de Tomás de Aquino, é considerado pecado mortal, visto que o sexo, para a Igreja Católica, serve apenas como instrumento de reprodução, e não de obtenção de prazer. Na escadaria da biblioteca, nenhum conceito filosófico-sexual-cristão passava pela mente de Catarina*. Embora trouxesse junto ao regaço obras de Simone de Beauvoir e de García-Lorca, não era com a condição feminina ou a poesia latino-americana do período das ditaduras que se ocupava. Subia os degraus lentamente, sentindo pesar sobre seu rosto o olhar que a acompanhava, ora evitando, ora encarando. Após o segundo lance de escadas, sentou-se no degrau de cima. Um breve colóquio cheio de risadinhas bobas (como são tolos os apaixonados!), e notou que Benjamin, o namorado de pouco tempo, esforçava-se para manter o decoro no local público. A biblioteca estava vazia, e lá fora, os fogos e as canções de São João rugiam, trovejavam, causando um barulho ensurdecedor. Passaram uma vida inteira na simples contemplação do rosto um do outro, o tempo corria, a areia da ampulheta caía, e os dois mantinham-se congelados, eternamente jovens, olhando. Apreendendo. Absorvendo. Bebendo cada detalhe das feições um do outro. Como se apenas de olhar, as linhas pudessem ser saboreadas pela língua. No momento em que os séculos deixaram de ser contados, e o tititi morreu nos lábios, as bocas se colaram uma a outra, e as mãos percorreram as curvas já conhecidas do corpo amado. Aguçaram-se os sentidos, aguçaram-se tanto que cada passo sobre os degraus, por mais longe que estivesse deles, era o suficiente para que ambos se soltassem, culpados, aguardando que algum padre inquisidor vestido como vigilante do prédio surgisse e tentasse puni-los por sentirem amor, por quererem se amar. Tão logo o silêncio fosse restabelecido, voltavam, lenta e languidamente, ao ponto onde pararam. Até a cidade mudou nas décadas contidas dentro dos 120 minutos que passaram juntos, perdidos na escadaria da biblioteca, deitados, ladeados por Beauvoir, Lorca e Darwin. Nasceram para aquele momento. Não tinham vivido se não para ele. Para as carícias intermináveis, para a delícia do toque delicado, que criava um desespero contido. Amor é como uma valsa, você sente medo de ficar zonzo com tantos rodopios, mas os passos se seguem sem que ninguém conduza totalmente. E a sucessão de movimentos ora lentos, ora mais rápidos, gera uma sensação de bem-estar jamais experimentada antes. Delectatio morosa. Deleite moroso. Não seria um sujeito feito Tomás de Aquino, embora respeitável, que embaçaria suas vistas com a sujeira do pecado. Na dúvida, melhor recorrer a Nietzsche e suas idéias a respeito da não-separação do corpo, espírito e mente. Se um depende do outro, oferecer prazer a um, necessariamente é beneficiar ao outro. Todos estavam muito velhos, e tudo tinha cheiro de novo quando saíram. Os grupos de quadrilha continuavam dançando, os fogos e a música de São João trovejando, e às mudanças da noite mal se lhes notava. As ruas por onde caminhavam apresentavam uma mudança sutil, quase imperceptível para quem não estivesse sob o efeito da mágica que faz o tempo correr em outra dimensão, de outra forma que não respeita o relógio. Benjamin. Beija a mim. Beija. Beijos. Os beijos na rua, que pediam para recomeçar o jogo. E depois, a despedida com gosto de êxtase até então desconhecido pelo resto do mundo. E de segredo, por ter descoberto a fórmula da imortalidade. Podia passar quanto tempo fosse. As horas deles eram eternas.
* Os nomes foram trocados para proteger as identidades dos culpados, ou inocentes, ou envolvidos, dependendo da sua visão em relação ao amasso.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito show o "amasso filosófico"!!!
Parabéns Lady in White!