segunda-feira, 16 de julho de 2007

Quero ser gata.

“Nós gatos já nascemos pobres / Porém, já nascemos livres / Senhor, senhora, senhorio / Felino, não reconhecerás” - Chico Buarque, “História de uma gata”

Manhã de janeiro. Estou eu refestelada no sofá acompanhada por dúzia e meia de livros acadêmicos, queimando neurônios, tentando entender o mundo. Hall, Eco, Jameson, Foucault, falta quem, falta quem? Eis que de repente, Mimi, a gatinha de estimação da minha tia, pula graciosamente para o meu lado, afofa as almofadas do sofá com as unhas e deita para dormir o sono dos inocentes.
Tenho uma amiga que não gosta de gatos. Sei que isso deixa esta crônica com cara de “procura-se um amor que goste de cachorros”, mas não é essa a intenção. Tenho uma amiga que não gosta de gatos. Aliás, tenho vários amigos que não conseguem apreciar as qualidades dos felinos. A mim, que sempre preguei a democracia, a liberdade de opiniões e a igualdade, só me resta dormir com esse barulho.
Acho graça quando alguém me diz que gosta de cachorros e não de gatos, ou vice-versa. É quase como dizer que gosta de homens e não de mulheres, e não falo de opção sexual. É gostar de mulheres, e nenhum homem do mundo servir ao menos para desejar bom dia. Cães e gatos são diferentes, mas exatamente como homens e mulheres, ou até mesmo mulheres e mulheres, são adoráveis de se observar. E exatamente como os diferentes, recebem tratamento desigual: aos cães, todas as regalias, o título de “melhor amigo do homem”, o pedaço de bife, o papel de mocinho nos filmes de Hollywood; aos gatos, os preconceitos. Dizem que eles são frios, interesseiros, egoístas, calculistas, incapazes de amar, como fazem até hoje com as mulheres. Os pobres descendentes de Bastet são associados ao mal encarnado, a superstições sobre má sorte. Eles são odiados pelos requintes de crueldade com que matam suas presas. Gozado... para mim, tudo isso faz com que eles pareçam... humanos.
Gatos gostam de passar a noite na farra e ter um lugar seguro para onde voltar. Quase todos os adultescentes que conheço também. Gatos não passam o dia atrás dos seus humanos (um gato nunca é bicho de alguém; sempre alguém é o humano de um gato), mas gostam que o colo, o carinho e o amor estejam lá. Vai dizer que você não é assim? Ah, pára, vai... mentindo pra mim? Gatos olham tudo com curiosidade silenciosa, observando, apreendendo, investigando discretamente, igual a uma certa jornalista que conheço, revirando em segredo os registros de entrada e saída de pacientes no Pronto Socorro Municipal para informar ao Jornal da Globo.
Sim, eles matam com um certo ar de caçadores cruéis as suas presas, a mesma crueldade estampada no rosto de homens e mulheres que insistem em brincar com os sentimentos do sexo oposto (ou do mesmo, dependendo do gosto) para provar que podem. Ainda assim, acho que os gatos atingiram uma condição que nos é negada: a da liberdade. Mesmo que se diga o contrário, estamos eternamente atados a convenções das quais nem nós nos damos conta. Basta observar melhor as relações afetivas entre os gatos.
Gatas no cio são extremamente interessantes. Aquelas criaturinhas tão frágeis, delicadas, elegantes soltando miados altos de desejo incontido, e pedindo pelamordedeus para que seus humanos não tranquem a porta e deixem-na visitar o gato do borracheiro da esquina, que pode não ter pedigree, mas morde que é uma beleza. E nós, e nós? Compramos a baboseira histórica de sociedade de classes, de sangue azul, de caráter, personalidade e renda, quando às vezes tudo o que queremos é seguir os instintos mais primitivos de macho e fêmea. Refreamos e retesamos o desejo até deixá-lo sob o domínio da razão, até canalizá-lo para as ambições, para a produção, para a guerra...
Um gato divide o teto comigo. Chama-se Ravel (aliás, todos os gatos dessa família têm nomes musicais: Ravel, Mimi, Fígaro...). Não foram poucas as vezes em que ele voltou para casa com o sol nascendo, cheio de feridas arranjadas em brigas com outros gatos, seja por amor, seja por território, mas principalmente pelo primeiro. Nós? Temos medo de brigar, de bancar os ridículos, de aceitar que sempre vale a pena investir, dedicar horas e pensamentos, ou mesmo alguns segundos, um recado no orkut, um telefonema... observar o Ravel me fez entender que o amor às vezes dói, deixa marcas, mas o prazer que ele proporciona é tão grande e tão melhor do que simplesmente uma vazia dança horizontal de corpos, que se um gato tem a coragem de se atirar de cabeça, eu também tenho.
Mulheres têm muito de gatas até o momento em que deixam o papel de mulher de lado, e assumem apenas o de mãe. Daí, passam a ser caninas. “Não vai te meter em fofoca!”, “Leva o guarda-chuva!”, “Esse homem não é bom pra você!”, “Não largue o emprego desse jeito!”. Prudência, sempre prudência. As gatas se metem onde não são chamadas, porque informação é poder, pegam chuva e chegam tiritando de frio em casa, não estão preocupadas se ele não ligou no dia seguinte, e se estiverem, tudo bem, enquanto isso, estou com você. Largam o emprego assim que este deixa de ser um prazer e se torna uma obrigação insuportável, mesmo que receba comunicado do SPC e viva de luz por um tempo.
Confesso que não sou tão gata quanto gostaria, ainda trago em mim muito dos cães. Ainda me preocupo com o jogo injusto dos relacionamentos, eu que não sei jogar, ainda sou prudente e não esqueço o guarda-chuva. Mas agora, observando a pequena Mimi no seu soninho post-coitum, começo a miar baixinho “eu quero, eu quero. Quero uma vida mais intensa, mais cheia de sensações, sem tanto medo do que virá, quero não ter que me preocupar se ele está apaixonado desde que a noite tenha sido boa, quero viver o hoje e deixar-me levar ao amanhã, em vez de tentar construir o amanhã sem atentar para o hoje, eu quero esquecer o guarda-chuva e deixar a tempestade das tardes de Belém lavar as marcas dos grilhões que me atavam os pulsos, quero... CARAMBA! Já são meio-dia!!! Merda, vou chegar atrasada, ai que droga...”
Enquanto paro de miar a liberdade para as paredes, Mimi abre lentamente seus olhinhos de gata e me olha com um misto de piedade e desprezo, como se dissesse: “Desse jeito, você nunca vai conseguir”. Desculpe, Mimi. Talvez ainda não seja a hora de virar gata, mas um dia, eu chego lá.

6 comentários:

Anônimo disse...

"As gatas se metem onde não são chamadas, porque informação é poder, pegam chuva e chegam tiritando de frio em casa, não estão preocupadas se ele não ligou no dia seguinte, e se estiverem, tudo bem, enquanto isso, estou com você. Largam o emprego assim que este deixa de ser um prazer e se torna uma obrigação insuportável, mesmo que receba comunicado do SPC e viva de luz por um tempo".

Já havia lido teu texto anteriormente e tu sabes o quanto me identifiquei com isso... O curioso é que neste fim de semana dormi na casa de uma amiga que tem duas gatas. Uma das gatinhas, talvez por ter sido castrada desde novinha, é dócil e vive em casa. Nunca soube o que é um cio nem como é se enveredar pelos telhados da vizinhança...

A mais velha, em compensação, é daquelas que você usou como exemplo no texto: some de casa, é bandoleira, se mete em briga, sai por aí sem rumo, já foi até raptada... Mas pra mim rola uma identificação toda especial com essa gatona, porque ela vive. Até mais do que eu pretendo!

Cily disse...

Adorei esse texto!! Me identifiquei muito.

*e falou de gato já ganhou minha atenção :D*

Bjs

Anônimo disse...

Nome de gato não vai para o SPC... ai que vida boa e invejável! hehehe

Anônimo disse...

Eu admiro os gatos em um nível extremo. São bichos que transbordam conhecimento em todos os atos.

Eu já tinha escrito sobre gatos no meu blog:

http://pornographics.vox.com/library/post/cotidiano-ut%C3%B3pico.html

Até!

Isa disse...

Q texto perfeito.
Eu tenho, pelo mnos o desejo de ser mais gata. Pra q melhor coisa q a liberdade?

Anônimo disse...

bem...
me falaram que o sexo dos gatos depois do cio dói nas gatas...
eu acho que é verdade pois a mimonet, uma gata emprestada, depois de me ver transando e gemendo alto me acompanhou até o banheiro e ficou me olhando com ar de piedade...
e não consegui explicar pra ela que somos diferentes, mas ela queria ser minha amiga essa hora e ajudar a carregar a minha dor...
apezar de achar a gata muito sensível acredito que ela não sabia que nessa hora eu estava extremamente leve